O risco de cortes “cegos” é real. Uma coisa é cortar em áreas não reprodutivas. Outra medir os cortes pela contabilidade simples de "dá prejuízo? Corte-se”! Isso passa-se em diversas áreas. Uma das mais críticas é a dos transportes. E, nestas, a questão dos Portos e Ferrovia são as mais críticas. Porquê? Porque em Portugal há duas áreas com potencial de crescimento crítico que dependem de transportes:
- turismo (importam sobretudo os aeroportos e a rede de transporte interno e urbano)
- carga (Portugal tem localização e potencial para ser Hub de entrada na Europa, para isso precisa de bons Portos (com boa operação a nível de tempos e custos competitivos) e de linhas férreas que rapidamente coloquem
Assim, fechar linhas na área do Douro (em áreas onde os carros não podem chegar com a mesma beleza), ou que ligam Beja – onde se acaba de abrir aeroporto! –, ou na zona do Oeste (a menos que a rodovia possa substituir com vantagem) revela-se um tiro no pé ao nível do turismo.
Fechar linhas que permitam o escoamento para Espanha, sobretudo a partir de Sines, Aveiro-Salamanca e Porto-Galiza, revela-se uma tiro no pé em termos dessa competitividade na área dos transportes e logística, sobretudo após grandes investimentos nos portos e nas plataformas logísticas! Não esquecer que o MAR é uma das áreas em que realmente podemos ser competitivos, e a ferrovia de carga é a extensão imprescindível a esse crescimento, mesmo que seja deficitária na operação – algo reversível a prazo, se investimentos forem devidamente enquadrados com a política portuária e a promoção de Portugal como “porta de entrada na UE” de transporte de carga marítima.
Por fim, e ao nível da mensagem do país, é também um tiro no pé: se nos queremos apresentar como país ambientalmente responsável e até exemplar, a troca da ferrovia pela rodovia, para mais onde as linhas já estão “rasgadas” não faz sentido. isto sem prejuízo de, em certos casos, os encerramentos fazerem sentido, por clara inadequação dos investimentos e custos de manutenção aos eventuais proveitos ao nível de serviço de populações, turismo e carga (há zonas onde, por exemplo, a rodovia já substituiu, de facto, a ferrovia).
Cortes cegos não têm sentido. O mero raciocínio contabilístico não faz sentido. É a diferença entre pensar como “contabilista” ou “merceeiro” ou pensar estrategicamente. É também a diferença entre pensar a gestão pública (que deve pensar no país como um todo. Não se pode sequer limitar a pensar o Estado, as contas públicas ou a empresa pública A ou B) ou e a gestão privada. Numa empresa poderia fazer sentido pensar: “esta área de negócio dá prejuízo? Corta-se”. No Estado esse raciocínio, por si, não serve. A educação, por exemplo, é deficitária. Se olharmos o curto prazo…. E mesmo numa empresa este raciocínio não serve: as áreas comerciais, a de I&D, ou a de marketing de uma empresa, na maioria dos casos - , são deficitárias, mas sem elas não há vendas, não há produtos inovadores e melhorias de produtividade e processos, ou não se acedem a dados mercados, por exemplo. Pensemos em empresas portuguesas. Pensemos em empresas na área dos vinhos ou da cosmética. E outras nas áreas dos equipamentos ou dos softwares. Para a empresa dos vinhos ou da cosmética, vender na “Harrods” pode ser decisiva. Até pode oferecer essas garrafas e … perder dinheiro. Mas no momento em que chegue a qualquer outro potencial cliente de qualquer parte do mundo, e diga que é fornecedor da Harrods, não só é recebido, como se arrisca a ser aceite como fornecedor como até pode vender mais caro o seu produto… Criou um posicionamento! Esse o valor de ter o seu produto no Harrods… que compensa largamente o valor perdido na venda para a Harrods. O caso das empresas de equipamentos e softwares tem o mesmo tipo de raciocínio. Se a Critical Software não tivesse conseguido fornecer a NASA nunca seria o que é hoje. Mesmo que tenha perdido dinheiro na operação NASA, isso seria irrelevante. A NASA foi a “linha” que abriu o “caminho” para um dado posicionamento e para a lançar como fornecedor a um dado nível, de um certo tipo de produtos e serviços. O paralelo com a ferrovia como extensão dos portos é óbvio: pensando Portugal como um todo – e não meramente na CP ou na REFER – esse posicionamento é crítico para poder capitalizar o potencial marítimo, uma das chaves para Portugal. Conseguir diferenciar o “despesismo” do investimento estratégico é crítico para Portugal, tal como a coerência das políticas (aposta na rodovia vs. ideia de país ambientalmente preocupado?). E há muitas despesas que são de facto não reprodutivas – como muitos dos Kms de auto-estrada, incentivos a bens não transacionáveis, etc. Infelizmente nem sempre conseguimos como país fazer esta distinção…
Em suma: primeiro decidam quais as áreas estratégicas para Portugal. Pensem-se os meios e recursos necessários. E depois corte-se no resto… e invista-se no que for importante para essas áreas.
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